Posse
de arma de fogo com o registro vencido: a decisão do STJ no julgamento do HC 294.078-SP (04/09/2014) e a aplicação da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento)
* Ivan Pareta Júnior – Advogado
Porto Alegre, 12 de setembro de 2014
Porto Alegre, 12 de setembro de 2014
A
Lei nº 10.826 (Estatuto do Desarmamento),
que entrou em vigor no ano de 2003, prevê alguns tipos penais, dentre eles a
posse irregular e o porte ilegal de armas de fogo de calibres permitidos e
restritos.
Mesmo
com as acentuadas manifestações populares e com o resultado do referendo
realizado no ano de 2005, que não permitiu a entrada em vigor do dispositivo
que proibia o comércio de armas no Brasil, o Estatuto é uma realidade que segue
cerceando o direito dos brasileiros ao pleno exercício da legítima defesa.
A
posse irregular de arma de fogo de calibre permitido está tipificada no art.
12, com pena de 1 a 3 anos de detenção e multa; já a de calibre restrito, está
prevista no art. 16 (ambos da referida Lei), com pena de 3 a 6 anos de reclusão
e multa.
Analisando
as elementares do tipo elencadas no art. 12, de uma forma literal, podemos
perceber claramente que quem praticar as condutas de “Possuir ou manter sob sua guarda arma de
fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação
legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta,
ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável
legal do estabelecimento ou empresa” estará incidindo no crime
de posse irregular de arma de fogo de uso permitido.
A expressão “de uso permitido” possui a finalidade de
diferenciar o tipo supramencionado do previsto no art. 16, que faz referência à
posse e ao porte de arma de fogo de calibre restrito. As definições de calibre
permitido e restrito estão dispostas no Dec. nº 3.665/2000 – R-105 (Arts. 16 e
17, respectivamente). Também há definições, no mencionado Decreto, para os
termos “arma de fogo” (Art. 3º,
XIII), “acessório” (Art. 3º, II) e “munição” (Art. 3º, LXIV).
As expressões “no interior de sua residência ou dependência
desta” e “no seu local de trabalho,
desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa”
possuem a finalidade de diferenciar o delito previsto neste dispositivo, do
porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (Art. 14 do Estatuto), ou seja, a
arma que se encontrar irregularmente nestes limites (residência ou local de
trabalho) incidirá no delito de posse irregular; mas se estiver fora destes
limites, no porte ilegal.
Estas definições parecem
claras, entretanto, a discussão objeto da recente decisão do Superior Tribunal
de Justiça refere-se à interpretação da expressão “em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Para que possamos interpretar
esta expressão no seu contexto legal, precisamos, primeiramente, compreender
como ocorre a aquisição de uma arma de fogo de calibre permitido por um agente
que não pertença às forças armadas ou forças de segurança pública e nem é
caçador, colecionador ou atirador desportista.
O art. 3º do referido Estatuto
remete à obrigatoriedade do registro de arma de fogo no órgão competente – Sistema
Nacional de Armas (SINARM – Polícia Federal). Já o artigo seguinte (Art. 4º), apresenta um rol de requisitos para
aquisição de arma de fogo de calibre permitido, sendo eles: declaração de
efetiva necessidade; idade superior a 25 anos; ocupação lícita; residência
certa; comprovação de capacidade técnica e psicológica e comprovação de
idoneidade, com a apresentação de diversas certidões negativas.
Uma vez preenchidos os
requisitos e autorizada a aquisição da arma de fogo, será emitido um
certificado de registro, que autoriza o seu proprietário a possuí-la e mantê-la
sob os seus cuidados, na sua residência ou local de trabalho (quando titular ou
responsável legal do estabelecimento ou empresa). Ocorre que este registro
possui a “validade” de 3 anos, podendo ser renovado sucessivas vezes, se o
agente que possui autorização para a posse da arma de fogo comprovar novamente
os requisitos supramencionados.
Até a recente decisão do
Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 294.078-SP (2014/0106215-5), de 04 de setembro de
2014, a jurisprudência era pacífica no sentido de que a posse de arma de fogo
de calibre permitido, nos termos da autorização supra, quando do vencimento do
registro sem a sua efetiva renovação, preenchia as elementares do tipo de posse
irregular de arma de fogo, pois estaria em
“desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Destarte, caberia a prisão
em flagrante do agente que incidisse neste delito, a qualquer tempo, enquanto
não cessada a conduta, nos termos do art. 303 do Código de Processo Penal, por
se tratar de crime permanente.
Outrossim, por se tratar de
crime abstrato (onde o perigo é presumido e para a sua configuração basta que o
agente pratique um dos elementos do tipo penal) e também coletivo (por expor um
número indeterminado de pessoas ao “risco”), mesmo que o simples fato do
registro perder a sua validade não modificasse em nada a incolumidade pública,
ainda assim a conduta seria enquadrada nos termos do art. 12 do Estatuto.
Importante salientar que
como a autoridade policial possui conhecimento do local onde se encontra a arma
(em razão do seu registro), a prisão do seu proprietário, quando do vencimento
do documento, poderia se dar de forma automática, pois qualquer cidadão teria o
poder, e todo policial o dever, em tese, de ingressar no local que consta no
registro, a qualquer momento, e realizar a prisão em flagrante do proprietário
da arma de fogo, bem como a apreensão da arma irregular.
Ocorre que a decisão do STJ,
no HC 294.078, analisou o dispositivo em comento sob um prisma teleológico, compreendendo
como finalidade maior do dispositivo “permitir
que o Estado tenha controle sobre as armas existentes em todo o território
nacional”.
Por mais que a interpretação
literal do dispositivo nos conduza a ideia de que o vencimento do registro
incidiria no tipo penal da posse irregular, de fato, se analisarmos sob um
aspecto mais finalístico veremos, inclusive, que a exigência de renovação do registro
a cada 3 anos, arcando com todos os custos do procedimento de renovação, se
mostra medida exagerada e desnecessária, pois o Estado continuará tendo controle sobre
o armamento.
Ainda, se o registro atesta
a propriedade sobre a arma, que espécie de propriedade seria esta que vence a
cada três anos, sendo necessário confirmarmos inúmeros requisitos e arcarmos
com diversos custos para garantirmos a posse de algo que já nos pertence?
O Exmo. Sr. Ministro Relator
Marco Aurélio Belizze compreendeu que por mais que a arma de fogo esteja
irregular, em razão do vencimento do seu registro, não caberia qualquer sanção
criminal, por ser materialmente atípica a conduta do agente, sendo passível
apenas de sanção administrativa. Acrescentou, ainda, que “a mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode
conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal”.
Partindo do pressuposto de
que o crime deve ser fato típico, ilícito e culpável, e de que a tipicidade
subdivide-se em formal (subsunção do fato à norma) e material (onde deve restar
lesão ou ameaça de lesão relevante à bem jurídico tutelado) podemos perceber
que o simples vencimento do documento em nada modificaria a situação de risco quanto
ao controle do armamento, tendo em vista que a arma já é registrada e o Estado já
possui controle sobre ela, podendo rastreá-la se necessário.
Considerando o direito penal
como “ultima ratio”, em decorrência
do princípio da intervenção penal mínima, determinadas sanções administrativas
como o pagamento de multa e talvez a própria apreensão do armamento considerado
irregular (até a devida renovação do certificado de registro), bastariam para
solucionar a suposta “falta de controle” do Estado sobre o armamento.
Por uma questão de política
criminal, também é irrazoável realizar a prisão de um cidadão, privando-o da
sua liberdade e conduzindo-o a um processo criminal, pela simples perda de um
prazo para renovação do documento de registro. Se este indivíduo procurou o
Poder Público e demonstrou preencher os requisitos para a aquisição da arma de
fogo já denota a boa fé do agente em cumprir as determinações legais, mantendo
o Estado informado sobre a situação da sua arma.
Seria injusto punir
criminalmente um agente pela conduta omissiva ao esquecer a data de renovação
do seu registro ou mesmo por ignorá-la em razão dos inúmeros entraves criados
pelo próprio Poder Público.
O Exmo. Ministro Relator
ainda faz referência, no seu voto, ao projeto de Lei nº 3.722/2012, em trâmite
na Câmara dos Deputados, que visa substituir o Estatuto do Desarmamento, e que prevê
como típica a conduta de possuir arma de fogo sem o devido registro, mas não
menciona a suposta irregularidade abstrata como elementar do tipo.
De fato, este já é um pequeno
avanço, contudo, a nova Lei, em fase de aprovação, também deixa muito a desejar
no que tange os direitos à posse e ao porte de arma de fogo pelo “cidadão
comum”.
Podemos perceber, no
entanto, que o referido projeto de Lei exerceu influência positiva sobre a
decisão unânime da 5ª Turma do STJ, tendo em vista a dificuldade de deixarmos
de interpretar literalmente o dispositivo do artigo 12, da Lei nº 10.826, e o analisarmos de uma
forma mais finalística, pois de fato ao lermos a norma, a conduta parece se
encaixar perfeitamente ao tipo penal.
Neste sentido, a admirável
decisão da respeitável Corte já serve como norte aos operadores do Direito, na
aplicação dos dispositivos do Estatuto do Desarmamento, para que não sejam
cometidas mais arbitrariedades ao privar de sua liberdade e conduzir a um
processo criminal um cidadão que apenas perdeu um prazo para a renovação do
documento que lhe dá o direito de possuir a sua arma de fogo em sua residência
ou local de trabalho.
Artigo publicado na Revista de Doutrina Jus Navigandi:
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)
OLIVEIRA JÚNIOR, Ivan Pareta de. Posse de arma de fogo com o registro vencido. A decisão do STJ no julgamento do HC 294.078-SP e a aplicação da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4097, 19 set. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/32055>. Acesso em: 19 set. 2014.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/32055/posse-de-arma-de-fogo-com-o-registro-vencido#ixzz3DyHjaZ9V
Artigo publicado também na Revista de Doutrina Conteúdo Jurídico - Brasília/DF:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA JÚNIOR, Ivan Pareta de. Posse de arma de fogo com o registro vencido: a decisão do STJ no julgamento do HC 294.078-SP (04/09/2014) e a aplicação da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 out. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=.50045>. Acesso em: 01 out. 2014.
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